terça-feira, 20 de julho de 2010

FRANCISCA BUTLER – Uma compositora sacra contemporânea

A suavidade de seus sons, eu já conhecia. Eles vêm da memória, dos tempos de infância, em que eu morava junto à Igreja de Santo Antonio, na cidade de Cambé, Paraná, onde nasci. Primeiro minha casa era ao lado da igreja, em frente à porta lateral; e nos últimos três anos em que vivemos lá, era quase em frente à porta principal.

Por isso recordo as músicas, que hoje sei que são de autoria de Francisca Butler, envoltas na lembrança do jardim que circundava a igreja, das lâmpadas quase mortiças, e do movimento de pessoas que iam à igreja, ou simplesmente passeavam nas aléias ou nos caramanchões, onde o perfume das flores se misturava, nas noites de “reza”, ao perfume do incenso e ao canto da comunidade, respeitosa e compungida.

Só quando comecei a trabalhar na Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, em 1978, é que tomei conhecimento das partituras (Confio em Ti, Hino ao Sagrado Coração de Jesus, Jesus num berço de palha, A Santa Face e Ao Santíssimo Sacramento) e das letras que eu havia decorado, de tanto ouvir e de tanto cantar, também. Pois embora não fizesse parte da prática religiosa de minha família ir à reza, eu às vezes ia, e gostava de ver a cerimônia religiosa, ministrada pelo Pe. Symphoriano, alemão que se dedicava à salvação das almas dos cidadãos e cidadãs. E que, como pude testemunhar algumas vezes, mandava para casa as beatas mais fervorosamente empenhadas em se reunir à porta da igreja para falar mal da vida alheia...

Ao escrever o livro Mulheres Compositoras, tentei achar Francisca Butler, que, aliás, colocava endereço e telefone no rodapé das partituras. Como eu desconfiava, ela já não vivia. Mas consegui algum contato com seus familiares e, embora o verbete tenha ficado um pouco pobre, ela não foi esquecida.

Muitos anos depois, trabalhando no Teatro Municipal, fiquei sabendo por Maria José da Silveira, cantora do Coral Lírico, mais algumas coisas sobre Francisca. Ela foi a primeira aluna a se matricular no Colégio Santa Inês, da Congregação Salesiana, e era de origem irlandesa – o que explica seu fervoroso catolicismo. O pai, engenheiro, veio para São Paulo trabalhar na construção das estações ferroviárias. Por isso sua casa, bem à maneira inglesa, era de tijolos vermelhos, na Rua Helvetia.

Francisca estudou e diplomou-se em 1919 no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e lá se dedicou a lecionar piano, permanecendo no corpo docente durante 52 anos. Ao contrário de todos os outros professores, preferia ensinar Händel em vez de Bach, certamente herança de um ambiente mais anglófilo que germanófilo. E esta é outra raridade em sua biografia.

Um dia, ao sair do trabalho, foi atropelada, hospitalizada e nunca mais se recuperou. Era o ano de 1972. Nesse ano, ela não chegou a completar seu aniversário, no mês de dezembro.

E Maria José da Silveira, sua afilhada de batismo, assim descreveu a madrinha: “Uma mulher sempre de preto, com um cinto largo, os cabelos presos atrás. Teria sido freira, se não tivesse que cuidar do pai”.

Posso imaginar o vulto austero, de quem também foi organista da Capela do Sagrado Coração de Jesus e da Igreja de São Gabriel. Mas para mim ela é a música que se evola, entre perfumes de jardim e de incenso, nas luzes de uma igreja repleta, onde a comunidade canta: “Eu quisera, Jesus adorado/Teu Sacrário de amor rodear/De almas puras, florinhas mimosas/Perfumando o teu Santo Altar”...

Palavras dela, em música que ela compôs.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

ROBERT E CLARA, ATRAVÉS DE SEU CANTO

Um momento de rara leveza e encanto, nestes tempos em que a poesia parece não encontrar mais um espaço próprio no gosto do público. Um recital de canto e piano, com obras de Robert Schumann, homenageado em seu segundo centenário de nascimento. E com obras de Clara Schumann, sua talentosa e brilhante companheira, da qual raras vezes a obra vocal é mencionada.

Angela Diel, mezzo-soprano, radicada em Porto Alegre, e Liliane Kuns, pianista de São Paulo, apresentaram canções de ambos, no Auditório do MASP, dia 13 de julho p.p., às 12 h 30min.

Quando falei em poesia, me referi à forma literária, mas também ao elemento Poesia que, invisível e impalpável, se realiza nas obras de arte, tanto mais quanto mais bem realizada cada obra. Nesta apresentação, peças poéticas e musicais escritas há mais de 150 anos, e dentro de uma estética que, ainda forte em nosso imaginário, já não é aquela em que criamos agora, foram capazes de nos comover e nos levar a um outro tempo, uma outra dimensão.

As intérpretes se colocaram à altura do desafio e nos convenceram plenamente. As músicas, como ressaltou Angela Diel, apresentando as obras, seguem de perto o pensamento de cada poeta, e estes, no caso, são figuras importantes, que estabeleceram a fisionomia do romantismo alemão e inspiraram seguidores desta escola no mundo todo.

Mas o que me faz trazer a este blog tão específico os comentários sobre este evento é o fato de Clara estar colocada ao lado de Robert, de ter sido apresentada ao público com tanto respeito, de ter suas obras interpretadas com igual empenho e qualidade. Angela e Liliane juntaram no palco dois seres que se amavam em vida, e mostraram amar a ambos, através de sua música. Como ambos amavam a Música, como Arte. E como elas, para realizar o recital neste elevado patamar, com certeza também amam.

Nilcéia C. S. Baroncelli

OBS. O mesmo programa será apresentado por elas no Teatro SESI de São Bernardo do Campo, dia 17 próximo, às 20 hs.